Entrevistas aos Founders e CEO das startups residentes na Casa do Impacto, cuja missão se alinhe com o ODS trabalhado em cada mês.

Maio | ODS 16 | Paz, Justiça e Instituições Eficazes

Duarte Fonseca, founder da Reshape Ceramics

Nasceu na cidade do Porto, onde se formou em Terapia Ocupacional e trabalhou numa prisão. Foi Consultor de Inovação na Beta-i e na Associação Just a Change. É atualmente Diretor Executivo da APAC, uma associação que cofundou em 2015 e que tem como missão disseminar e implementar novas abordagens que transformem a vida de todos os reclusos, fornecendo-lhes as ferramentas e estímulos necessários à sua efetiva reinserção, promovendo uma sociedade mais coesa e segura, bem como uma maior eficiência para todo o sistema. É ainda membro dos Global Shapers desde 2019, uma comunidade criada pelo World Economic Forum.

“Acreditamos em segundas oportunidades. Tanto para as matérias-primas como para as vidas que as produzem.”

A Reshape Ceramics é uma iniciativa da APAC que, entre outras, visa “criar um impacto positivo na vida da comunidade prisional criando melhores e iguais oportunidades para uma integração digna e bem-sucedida na sociedade”. Cria peças de cerâmica únicas e artesanais, que são produzidas de forma transparente por atuais e antigas pessoas da sua comunidade prisional. As peças estão à venda na sua loja online e todos os lucros são reinvestidos na organização, no sentido de aumentar o número de vidas impactadas.

 

O vosso primeiro target são pessoas reclusas. Como é que se dá este “recrutamento”?

Sim, o nosso target inicial são as pessoas que ainda estão a cumprir pena. Sabemos que começando o trabalho com as pessoas no seu processo de desenvolvimento ainda em reclusão, aumentamos exponencialmente as probabilidades de uma reinserção de sucesso.

 

Há um processo de seleção com base em competências prévias, formação para quem revele interesse?

Temos apenas um critério ao nível das competências (se quisermos chamar-lhe assim) que é a motivação para entrar num caminho de mudança e de transformação. Ou seja, estar motivado para mudar de vida e para preparar o regresso à liberdade. Depois em termos práticos, acabamos por ter outros critérios como ser da área da grande Lisboa, para que possamos continuar o acompanhamento quando estiverem em liberdade, ou ter pelo menos um ano ainda de pena por cumprir.

 

Qual é a adesão? Existe remuneração?

Quanto à adesão é bastante grande, por um lado por ser uma alternativa diferente ao que é a rotina em meio prisional, por outro por existir uma remuneração digna e justa.

 

Como surgiu a ideia? Em que se distingue objetivamente das outras iniciativas da APAC ou de outras em geral?

A ideia surgiu em visitas a estabelecimentos prisionais, quando encontrámos uma antiga olaria abandonada e praticamente equipada para se começar a produzir.

 

Qual a proposta de valor, UVP (unique value proposition) e clientes-tipo?

A proposta é a de sermos capazes de “reutilizar” pessoas que estão à margem, ao mesmo tempo que reutilizamos espaços e equipamentos que não estão a gerar valor. Diria que se distingue de outras iniciativas por conseguir unir num só projeto ou num só negócio (como preferirmos chamar-lhe), todas as vertentes de impacto. Por um lado, a vertente do impacto social óbvia da Reshape Ceramics, que existe para criar oportunidades concretas de reinserção ao criar postos de trabalho. Por outro lado, o impacto económico, pois espera-se que seja um negócio sustentável e que possa vir a crescer organicamente, passados os investimentos iniciais que qualquer negócio (principalmente de transformação), passa. E por fim, criando um negócio ambientalmente responsável, numa indústria que tradicionalmente não é conhecida por isso (a indústria da cerâmica). Claro que, em cada um destes pontos, ainda temos muito trabalho a fazer e melhorias a implementar, mas este será sempre um processo dinâmico e nunca acabado.

O cliente-tipo é o cliente final. São as famílias que querem ter um tipo de consumo mais consciente e responsável, por um lado porque compram cerâmica de qualidade, resistente e duradoura, por outro porque querem comprar com impacto, sabendo que estão a gastar dinheiro que será reinvestido para criar ainda mais impacto. Também queremos que o cliente final sejam as famílias porque, queremos que os desafios e problemas do nosso sistema prisional passem a fazer parte das conversas ao jantar, que se comece a questionar o que é feito nas nossas prisões, que se gerem opiniões sobre como deve a reinserção em Portugal e sobre a importância das segundas oportunidades. 

 

Quais os maiores desafios que tiveste no processo de criação do negócio (seja a nível de alcance do target, marketing, digital, etc.) enquanto co-founder da Reshape Ceramics e particularmente durante a pandemia?

Lançar um negócio tem sempre imensos desafios, seja ao nível do recrutamento, do capital disponível para investimento, etc. No nosso caso temos o desafio de conseguir produzir com a qualidade que ambicionamos. Diria também, que a maior dificuldade que temos é o capital disponível para a causa em si, ou seja, não existir muito capital filantropo disponível para o sistema prisional. Talvez por ser a cave dos problemas sociais, é um problema pouco visto, pouco sentido e por isso muitas vezes esquecido, até por quem se dedica a causas sociais.

 

Quais os maiores benefícios em estarem incubados na Casa do Impacto?

Diria que, um dos maiores benefícios são os outros residentes da Casa. Estar constantemente exposto a novas formas de trabalhar e ver o ecossistema a ser eficiente e arrojado é algo que nos torna melhores, quase por osmose. Mas os benefícios vão muito para além disso. Por um lado, a rede que a Casa do Impacto e a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa têm e que põem ao dispor dos projetos. Por outro lado, o próprio espaço da Casa. É cada vez mais estudado e sabido que espaços influenciam comportamentos. Assim, estar num espaço agradável, com luz, onde se respira energia e boa disposição, torna-nos mais produtivos, mais eficientes, e penso que tal se reflete na forma como temos desenvolvido os nossos projetos… Por fim, o acesso a investidores sociais, capital e a capacitação é algo muito importante, principalmente quando se quer crescer com impacto e dar saltos qualitativos e quantitativos. Tudo isso, o ecossistema da Casa do Impacto também traz e quando não existe a Casa do Impacto cria.

 

Como é que medem o impacto? Alguns outputs e outcomes que queiras partilhar?

Em todos os nossos programas pensamos e medimos o impacto, sabendo que existem imensas barreiras à sua medição e imensos enviesamentos. Não podemos querer ser uma startup de impacto e não fazer a nossa parte! Por um lado, no curto e médio prazo, a nossa medição centra-se muito na alteração de comportamentos, com medições concretas e regulares. A longo prazo, a nossa medição de impacto é simples: a pessoa voltou a cometer crimes ou não; está integrada (socialmente e financeiramente estável) ou não?

 

Como empreendedor, tens de lidar com muitas incertezas. O que mais motivação te dá para lidares/ superares essas incertezas e quais as lições mais importantes que obtiveste até hoje?

De onde vem motivação para lidar ou superar as incertezas é uma incógnita, e existem dias, semanas e às vezes meses que só apetece desistir. Penso que o truque está em confiar, por um lado nas pessoas que temos ao nosso lado (nada se faz sozinho), por outro, confiar no processo. Se há um dia atrás estava tudo bem e sentia que estávamos no caminho certo, não pode hoje o caminho estar errado só porque eu estou incerto e desmotivado…. Diria, portanto, que muitas vezes o truque está em deixar-nos ir. Isto pode parecer um convite à loucura, mas não é. Quando digo isto, estou a querer dizer “deixar-nos ir” para a direção que antes definimos com a equipa e que nos pareceu ter sentido, e depois ir avaliando os resultados. É importante não ter medo de ir alterando os planos se necessário, mas não se faz isso em dias que estamos em baixo ou desmotivados. Faz-se quando estamos bem e quando vemos com clareza.

Quanto às aprendizagens e lições mais importantes diria que marca, posicionamento, história e design contam muito mais do que aquilo que podemos achar. Não basta querermos fazer o bem, é preciso mostrar muito bem o que estamos a fazer. É como a frase de “à mulher de césar não basta ser honesta, deve parece ser honesta”. Sabendo o que sei hoje, iniciaria a Associação num grande evento com speakers internacionais e com isso lançaria logo um negócio social, uma Reshape Ceramics. É impressionante a credibilidade que se ganha ao estar num palco, ao lado de quem já demonstrou saber o que faz e de quem já provou ter resultados. Com este tipo de exposição, aparecem muitas outras oportunidades para criar impacto.

 

Sugestão de: um livro, ou leitura online, ou documentário, ou filme, etc. relacionado com a missão da APAC/ Reshape Ceramics e/ou com o ODS 16 – Paz, Justiça e Instituições Eficazes

Recomendo o livro “Ressurreição” de Lev Tolstói

O último dos grandes romances de Lev Tolstói, conta a história de um príncipe russo e de uma jovem empregada doméstica, que ele seduziu no passado. Com consequências dramáticas, a mulher acaba por cair na prostituição, por ser acusada de um crime que não cometeu e por ser enviada como prisioneira para a Sibéria. Uma narrativa de grande intensidade psicológica, que fala da redenção e do perdão inerentes ao amor e ao mesmo tempo descreve a vida social da Rússia czarista de finais do século XIX. É uma crítica sarcástica às injustiças sociais, ao sistema judicial e ao regime russo.

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